Programa de Reabilitação Neuropsicológica em Pacientes com Traumatismo Cranioencefálico Leve

 

O programa de reabilitação neuropsicológica utilizado para trabalhar com deficiências cognitivas após o traumatismo cranioencefálico leve (TCEL) está direcionado ao controle dos distúrbios da atenção, memória e funções executivas. As abordagens para trabalhar com os problemas de atenção, p.ex., incluem (1) as modificações ambientais e estratégias; (2) processo de treinamento da atenção; (3) apoio psicológico para alcançar um alto nível de adequação às alterações, autoregulação e autocontrole. No entanto, é necessário antes de se traçar o programa de intervenção, que se tenha uma lista individualizada dos problemas de base cognitiva que estão interferindo na função diária. O paciente pode relatar dificuldades em dirigir, problemas com preparação de alimentos, lentidão ou erros contínuos no local de trabalho, dificuldades em lidar com a distração, e/ou fadiga. A lista dos problemas produz insight sobre a consciência da pessoa, e a extensão e a natureza dos problemas funcionais, e o modo atual da pessoa em lidar ou responder aos problemas. Os objetivos, estruturados em termos funcionais, são mutuamente discutidos e colocados em acordo.

 

Algumas Técnicas Úteis para Trabalhar com Pacientes com TCEL:

- modificações ambientais

- aumentar e proporcionar generalização das destrezas de atenção

- aumentar a consciência metacognitiva do funcionamento da atenção e memória

- treinamento do controle da pressão do tempo (CPT)

- intervenções/compensações específicas de memória

- aumentar autoeficiência da memória

- proporcionar autocontrole e autoregulação do funcionamento cognitivo e emocional

- intervenções cognitivo-comportamentais

- treinamento da eficiência do enfrentamento e preparação para os lapsos

 


 

Modificações ambientais

 

Devem ser providenciadas informações aos pacientes sobre as formas pelas quais os fatores ambientais podem influenciar o desempenho cognitivo. O terapeuta junto com seu paciente deve explorar maneiras onde o ambiente possa ser alterado e criar estratégias ambientais que possam auxiliar na facilitação de sua vida diária.

 

Aumentar as destrezas da atenção

 

A prática repetitiva nas tarefas requer um alto grau de memória de trabalho e a automonitoração mostra ser benéfica no aumento do desempenho nas tarefas não praticadas que requerem habilidades semelhantes e/ou relacionadas.

 

Favorecendo a generalização das destrezas e estratégias de atenção

 

Através de uma longa série de exercícios envolvendo a atenção sustentada, seletiva, alternada e dividida, o paciente incorpora maneiras mais formais de direcionar a generalização do treinamento. Exercícios específicos e individualizados de generalização criados e organizados em casa ou no trabalho auxiliam no treinamento da atenção. Parâmetros específicos são estabelecidos com relação à natureza da atividade, a situação, a hora do dia ou a duração da atividade, nível de dificuldade e a medida de sucesso. O paciente completa a informação sobre seu desempenho na atividade, e as folhas da atividade são discutidas e modificadas como parte da terapia. Exemplos de atividade de generalização para a atenção sustentada incluem leitura por vários períodos de tempo ou persistência em uma atividade. Para as atividades de generalização na área de atenção seletiva, vários tipos de distração ou interferência são introduzidos em associação com atividades específicas. Dentro da área da atenção, tarefas funcionais simples são combinadas, e as medidas do desempenho/sucesso são obtidas para cada uma. Desde que as respostas emocionais às tarefas de exigência cognitiva são comuns, o critério de pontuação/classificação muitas vezes incorpora classificações subjetivas do estresse, irritabilidade ou frustração.

 


 

Intervenções metacognitivas

 

A intervenção metacognitiva envolve o uso de quadros de lapso de atenção e quadros de sucesso com a atenção. Estes quadros são mantidos pelo paciente tanto em casa quanto no trabalho. O primeiro tipo de quadro é inicialmente usado para ajudar tanto o paciente quanto o terapeuta para monitorar a frequência dos lapsos de atenção. A forma do quadro também pede ao paciente que identifique o que fez em resposta a cada lapso e o que deveria ter feito para evitar o problema ou aumentar o desempenho. Isso permite ao terapeuta procurar por padrões associados com os lapsos de atenção (p.ex., hora do dia ou local, cenário), bem como procurar os efeitos generalizados do tratamento. Para o paciente, isso também reforça a noção de que é possível algum controle sobre a ocorrência de lapsos, e que as respostas aos lapsos podem ser mais ou menos eficazes. O tratamento tenta desenvolver consciência através da interligação entre os lapsos e as respostas emocionais, e facilitar o aumento dos sentimentos de autocontrole. Logo, o quadro de sucesso com a atenção é introduzido com o objetivo de reduzir o foco nas falhas e destacar os sucessos, possibilitando o desenvolvimento dos sentimentos de sucesso e controle. Os pacientes registram situações ou eventos nos quais possam ter tido dificuldades, mas foram bem-sucedidos, e depois pensam sobre o que fizeram para facilitar o sucesso. O objetivo desse processo é desenvolver o insight, autoconfiança, e um entendimento de que eles podem, em uma ampla extensão, exercer influência e controle sobre as situações e sobre eles mesmos de forma a aumentar o sucesso.

 

Treinamento no controle da pressão do tempo

 

Uma fonte comum de frustração após TCEL é a dificuldade em controlar as tarefas sob a pressão do tempo. O processo lento da informação e as dificuldades com organização são consequências comuns da lesão cerebral em todos os níveis de gravidade. Muitos pacientes com TCEL experimentam um sentimento de “sobrecarga de informação” nas tarefas diárias que antes eram relativamente fáceis. O treinamento no CPT foi descrito por Fasotti, Kovacs, Eling e Brouwer (2000) e se constitui por uma série de exercícios cognitivos projetados para ajudar pacientes a aprender a dar a eles mesmos tempo suficiente para lidar com a tarefa a ser feita. Estas estratégias podem acarretar na intensificação da consciência, otimização do planejamento e organização, ensaio dos requisitos da tarefa, e/ou modificação do ambiente da tarefa. As principais estratégias cognitivas encorajadas no treinamento do CPT estão listadas abaixo:

 

1.      Reconhecer a pressão do tempo na tarefa a ser feita

- existem duas ou mais coisas a ser feitas ao mesmo tempo?

- existe tempo disponível suficiente para empreender as duas?

 

2.      Prevenir-se da pressão do tempo quanto possível

- fazer um breve plano das coisas a serem feitas antes da tarefa realmente começar

- eliminar as distrações ou ações que não necessitam ser feitas

 

3.      Lidar com a pressão do tempo o mais rápido e eficazmente possível

- identificar as etapas que serão feitas para completar as tarefas

- olhar regularmente o plano

- fazer um plano de emergência no caso de ser dominado pela pressão do tempo

 

Intervenções específicas da memória

 

Intervenções específicas da memória para pacientes com TCEL incluem a facilitação do uso de dispositivos de memória e estratégias organizacionais tanto externas quanto internas (p.ex., cadernos/agendas, organizadores, netbooks, relógios sofisticados, gravadores de vozes e pagers). Embora o treinamento e o uso de estratégias mnemônicas internas não sejam recomendados para pacientes com lesão de moderada a grave, devido às altas exigências com abstração, iniciativa e consciência, os pacientes com deficiências menos graves muitas vezes usam tais estratégias com mais sucesso. Vários pacientes com TCEL, talvez porque tendam a ter boa consciência de suas dificuldades, são normalmente muito abertos e receptivos à introdução de dispositivos externos de memória e estratégias. Acredita-se que por eles terem muitas das destrezas cognitivas mantidas, eles podem, muitas vezes, aprender a usar pronta e eficazmente sistemas externos realmente sofisticados e poderosos, bem como estratégias internas.

 

Aumentar a memória autosuficiente

 

O treinamento da área da metamemória e da memória autoeficiente é semelhante ao trabalho com a atenção autoeficiente descrito anteriormente. A autoeficiência, neste contexto, refere-se às crenças dos pacientes sobre a própria capacidade de memória, o grau no qual sua memória pode ser alterada, e o grau no qual o desempenho da memória está sobre o controle pessoal dele. As crenças autoeficientes são importantes porque mostram influenciar o nível de esforço que um paciente está disposto a despender em uma tarefa, e o processamento mais alto do esforço é conhecido por produzir desempenho melhor. As crenças sobre memória predizem não somente o desempenho da memória, mas também quanto os pacientes estão dispostos a apostar em seu próprio desempenho. As crenças sobre a probabilidade de que uma pessoa experimentará dificuldade cognitiva também têm mostrado contribuir com o nível de estresse. Mesmo as pessoas neurologicamente normais que se julgam ineficazes nas tarefas de memória, e que creem que lhes falta controle sobre a memória, mostram um desempenho pior da memória do que as pessoas que têm uma avaliação da memória autoeficiente. Os achados sugerem que a crença de que uma pessoa tem uma memória pobre pode elevar a aumentar a dependência dos outros, evitar os desafios de memória, e um padrão de desesperança e desmoralização diante das dificuldades de memória. Logo, um sentimento mais positivo de cognição autoeficiente poderia aumentar totalmente o nível do funcionamento cognitivo e a adequação emocional.

 

Favorecer o autocontrole e a autoregulação do funcionamento emocional

 

Embora seja importante direcionar diretamente as ineficiências e/ou deficiências cognitivas, também é importante considerar os temas sociais, comportamentais e emocionais que afetam o funcionamento cognitivo. O TCEL muitas vezes resulta em uma variedade de emoções e crenças negativas que podem significativamente influenciar o desempenho e a adequação funcional de uma pessoa. Vários pacientes com TCEL e suas famílias relatam problemas significativos com irritabilidade e rapidez para ficarem bravos. Estes sentimentos muitas vezes aparecem secundários à frustração, e são exacerbados pelo estresse. Pacientes com TCEL, dependendo das circunstâncias da lesão, também podem se sentir vítimas, maltratados e injustiçados. Estes sentimentos se tornam mais comuns quando eles veem a lesão não como falha deles, e podem ser exacerbados pela exigência prolongada ou pelas alterações no trabalho ou nos relacionamentos após a lesão. A ansiedade também é comum, e frequentemente relaciona-se aos sentimentos de perda de controle e de incerteza. Muitos pacientes com TCEL são particularmente frustrados pela inabilidade em prever como eles irão trabalhar e, em geral, sentem-se mais sensíveis e irritáveis. Outras emoções comuns incluem os sentimentos de perda e /ou depressão. Estes sentimentos estão mais comumente relacionados às percepções de inadequação, falha e inabilidade de alcançar ou manter os objetivos e as expectativas internas após lesão. Todas estas emoções costumam contribuir para o aumento de estresse.

Diversos fatores afetam a compensação emocional após o TCEL. A autoestima muitas vezes está minada ou destruída, em parte secundária às dificuldades cognitivas e, em parte devido à regulação perturbada do afeto e ao frágil senso de controle. Também pode existir a ampliação das tendências pré-mórbidas.

Sendo assim, é necessário que o objetivo principal da terapia psicossocial reconcilie as discrepâncias entre a própria avaliação dos pacientes sobre os seus funcionamentos e os seus desempenhos baseados na competência; o senso dos pacientes sobre a identidade e a habilidade pré-lesão; e as suas expectativas subjetivas para um funcionamento futuro bem-sucedido. É importante validar a experiência dos pacientes com TCEL, mas também é vital encorajar as interpretações alternativas dos sintomas como sendo apropriadas. Embora os fatores emocionais sejam importantes, não é sábio confrontá-los prematuramente. Dentro dos objetivos primários do tratamento devem estar o restabelecimento do senso abalado do eu, e a constituição e reforço da autoeficiência e da autoregulação.

As abordagens para se trabalhar com pacientes com sequelas emocionais do TCEL incluem as abordagens educacionalmente orientadas, intervenções cognitivo-comportamentais, treinamento do controle do tempo, e outras formas tradicionais de psicoterapia. Os exemplos de abordagens educacionais incluem a sugestão e o ensinamento de abordagens para lidar com vários problemas como frustração e irritabilidade. Exemplificando: ao auxiliar pacientes a lidar melhor com a frustração, deve-se dizer-lhes que embora muita frustração seja algo problemático, um pouco de frustração pode ser algo bom, porque a pessoa se esforça para adquirir ganhos. Também dever clarificado que não há problema em voltar, acalmar-se e tentar novamente; pois tal atitude irá ajudá-los a aprender quando devem fazer uma parada; e auxiliá-los a identificar e lidar com os sinais de fadiga ou frustração; encorajando-os a selecionar seus desafios.

 

Intervenções cognitivo-comportamentais

 

Os tratamentos cognitivo-comportamentais são baseados na premissa de que a cognição, os pensamentos e as crenças afetam a emoção e o comportamento, e que a autotarefa é um mediador poderoso do sentimento e da ação. Exemplificando: pessoas com sentimentos de culpa, baixa autoestima, esquivos, rejeitados ou possessivos muitas vezes sustentam uma variedade de crenças extremas, negativas e/ou disfuncionais que perpetuam o afeto negativo e um senso de desesperança. Estas distorções adquirem uma variedade de formas, incluindo pensamento dicotômico, supergeneralização, abstração seletiva, inferência arbitrária, personalização e sentimento catastrófico. O objetivo das intervenções cognitivo-comportamentais é ajudar a pessoa a identificar e modificar as crenças disfuncionais. Isto é feito através da identificação das crenças da pessoa e do conteúdo da autotarefa em resposta às situações diferentes e, então, auxiliar a pessoa a avaliar a situação e o seu desempenho em uma maneira mais racional e positiva. O tratamento normalmente envolve o entendimento do sistema de crenças da pessoa pelo seu registro diário dos pensamentos disfuncionais e, então, da facilitação das autoafirmações que são mais positivas. As intervenções cognitivo-comportamentais para depressão e isolamento/retraimento social são úteis muitas vezes, mas devem ser completadas pelos esforços para aumentar a atividade e o envolvimento social. Identificar e programar eventos prazerosos e planejar atividades sociais são adjuntos válidos para o tratamento.

 

Treinamento da eficiência do enfretamento e preparação para os lapsos

 

O programa envolve uma avaliação do treinamento, solução do problema, destrezas de enfrentamento e o favorecimento do suporte social. Um componente chave da intervenção envolve o favorecimento das afirmações positivas do autocontrole. Exemplificando: as afirmações geradas pelos pacientes incluem “Eu pretendo permanecer no controle – não minhas emoções nem meus problemas cognitivos”, “Eu posso e aprenderei e usarei as estratégias para recuperar o controle”, e “Eu ensinarei o meu corpo e meu cérebro a não responder primeiro às minhas emoções”.

Embora muitas destas técnicas sejam úteis para o aumento da confiança, também é importante se preparar para os lapsos. Após um período de aumento do enfrentamento, um lapso inesperado ou temeroso ou uma falha percebida pode resultar em uma cascata de autoafirmações negativas, aumento das distorções cognitivas, e diminuição do uso das destrezas de enfrentamento, todos podem contribuir para um aumento da probabilidade de lapsos futuros. Preparar os pacientes para tais lapsos, e enfatizar que isto não significa que não está sendo feito progresso, torna-se uma parte essencial no tratamento em reabilitação neuropsicológica em pacientes com TCEL.

 

Conclusão:

 

Um modelo biopsicossocial que incorpora a fisiogenia e os fatores psicogênicos tanto pré-mórbidos quanto atuais é o que melhor se encaixa para o entendimento dos resultados em longo prazo após o TCEL. As ineficiências cognitivas muitas vezes estabelecem um estágio para as reações emocionais negativas da frustração, raiva, irritabilidade e depressão. Entretanto, é importante direcionar o componente cognitivo nas intervenções através da educação, treinamento direto, e trabalho com as adequações e compensações. A atenção ao papel das respostas emocionais na intercessão das dificuldades cognitivas é um adjunto importante para o tratamento. Também é válido identificar as crenças dos indivíduos sobre as suas habilidades cognitivas, e favorecer expectativas racionais e equilibradas sobre seus funcionamentos. O tratamento deve favorecer o autoentendimento e o senso de eficiências e capacitação pessoal. É igualmente importante entender as vulnerabilidades emocionais pré e pós-lesão e os fatores da personalidade que podem interagir com os déficits, as circunstâncias e as experiências pós-lesão, e o tratamento.

 

 

Karla Behring Cardoso

Psicóloga e Prof. de Psicologia

Pós-Graduada em Neuropsicologia

Especialização em Neurociências aplicada à Reabilitação pelo IPUB-UFRJ (em curso) 

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