Neurociências e neuropsicologia dos traumatismos cranioencefálicos

 

A complexidade do cérebro e da cognição humana leva a necessidade da participação de profissionais de diversas áreas para que se possa compreender não só “onde” está a lesão, mas também “o quê” da cognição deve ser recordado, “como” as estruturas neurais processam e são processadas por esta cognição e ainda, “como” e “porquê” reabilitar o paciente com distúrbios cognitivos.
A neuropsicologia é uma ciência que inclui a promoção da saúde, a prevenção da doença e a reabilitação em todas as idades e em qualquer fase do ciclo de vida do indivíduo.
Neste amplo espectro, a neuropsicologia dos traumatismos cranioencefálicos detém uma essência própria que diz respeito a tudo o que se organiza para que a vida continue, tendo em vista a qualidade dessa existência.
Os acidentes de variadas ordens são uma realidade quotidiana que levam grande número de vítimas, em estado mais ou menos grave, e são causa de morte ou de incapacidades de um elevado número de indivíduos.
A consideração em se estabelecer as seqüelas neurológicas pós-trauma vem tomando proporções crescentes, tendo em vista a melhoria do atendimento destas vítimas e conseqüente diminuição da letalidade e aumento de vítimas dependentes dos cuidados de terceiros. Os resultados da análise quanto à influência dos déficits cognitivos e motores são ratificados por vasta literatura sobre o tema, em que os primeiros costumam ser mais freqüentes e em alguns casos, mais duradouros.
Crespo de Souza (2003) aponta que os estudos em TCE nos EUA mostraram que os indivíduos na faixa etária de 15 a 24 anos tinham maior risco de sofrer traumatismos cranianos e que a maior causa morte de pacientes com menos de 35 anos é tida em conseqüência de acidentes por veículos automotores.
Nas últimas décadas tem havido progressos fundamentais no tratamento dos pacientes com lesões traumáticas.
As conseqüências imediatas de um acidente podem refletir-se em vários níveis corporais, isoladamente ou em associação, pelo que os profissionais devem estar preparados para agir adequadamente em cada situação, oferecendo serviços de qualidade que diminuam o risco de morte e previnam ao máximo as incapacidades residuais.
Os traumatismos cranioencefálicos podem ser classificados em três tipos, de acordo com a natureza do ferimento do crânio: traumatismo craniano fechado, fratura com afundamento do crânio, e fratura exposta do crânio. Esta classificação é importante, pois ajuda a definir a necessidade de tratamento cirúrgico.
O traumatismo craniano fechado caracteriza-se por ausência de ferimentos no crânio ou, quando muito, fratura linear. Quando não há lesão estrutural macroscópica do encéfalo, o traumatismo craniano fechado é chamado de concussão. Contusão, laceração, hemorragia, e edema (inchaço) podem acontecer nos traumatismos cranianos fechados com lesão do parênquima cerebral.
O traumatismo craniano com fratura e afundamento caracterizam-se pela presença de  fragmentos ósseo fraturado afundado, comprimido e lesando o tecido cerebral adjacente. O prognóstico depende do grau da lesão provocada no tecido encefálico.
No traumatismo craniano aberto, com fratura exposta do crânio, ocorre laceração dos tecidos pericranianos e comunicação direta do couro cabeludo com a massa encefálica através de fragmentos ósseos afundados ou estilhaçados. Este tipo de lesão é, em geral, grave e há possibilidade de complicações infecciosas intracranianas.
As lesões encefálicas podem ser classificadas em primárias e secundárias. As lesões primárias são o resultado do impacto, e geralmente estão presentes já no momento do acidente. As lesões secundárias são aquelas de curso progressivo, ocorrendo como conseqüência de hematoma, edema isquemia ou hipóxia, podendo levar a lesões neurológicas tardias.
O tecido cerebral pode ser lesionado diretamente no lugar do impacto (lesão por ‘golpe’), ou em pontos diametralmente opostos ao impacto (lesão por ‘contra-golpe’). As porções inferiores dos lobos frontais e temporais são as áreas mais acometidas pelas lesões por ‘contra-golpe’, pois os ossos da base do crânio, sobretudo nas fossas temporal e frontal, apresentam superfícies rugosas, cheias de acidentes anatômicos.
Os traumatismos cranioencefálicos podem gerar diferentes padrões de prejuízos, dependendo principalmente de dois critérios: quanto à sua gravidade (leve, moderado e severo) e quanto ao tipo de lesão (difusa ou focal). As lesões difusas podem levar o paciente a manifestar lentidão de pensamento e do processamento de informações, dificuldades atencionais, fatigabilidade e, quando associadas a TCE grave, podem levar a prejuízos diversos, como alteração de linguagem e visuo-espaciais.
As lesões focais repercutem em prejuízos relacionados às áreas atingidas, porém, em lesões por golpe e contra-golpe, as alterações mais significativas costumam estar associadas à região contra-lateral ao choque. Nas lesões por desaceleração, as regiões temporais e frontais são as mais suscetíveis à lesões, devido ao choque com partes ósseas: pólos temporais e região órbito-frontal. Neste caso, podem ocorrer dificuldades relacionadas à memória e à aprendizagem, às funções executivas (planejamento, automonitoração, resolução de problemas) e de personalidade (alteração da capacidade de crítica e julgamento, impulsividade).
O exame neuropsicológico avalia funções cognitivas e complementa os exames de neuroimagem, pois a correlação que pode ser feita entre a localização da lesão e os sintomas observados na cognição, no comportamento, o seu impacto na vida diária do paciente não podem ser aferidas somente por instrumentos radiológicos.
Utilizam-se no exame neuropsicológico, testes específicos que avaliam aspectos diversos de todas as funções cognitivas. Este é o ponto de partida para se estabelecer um perfil de habilidades e dificuldades. A junção destes dados aos da história prévia e atual do paciente nos levam à compreensão de quais aspectos do exame são mais relevantes para serem abordados em um programa de reabilitação cognitiva.
 
Mecanismos e fisiopatologia das lesões cerebrais 
Os traumatismos cranianos ocorrem quando forças mecânicas são transmitidas ao tecido cerebral. O mecanismo de lesão pode ser por uma pancada ou penetração de um objeto na cabeça.
O traumatismos penetrantes podem resultar da penetração por um corpo estranho (p.ex. projétil de uma arma de fogo) que provoca danos diretos no tecido cerebral. Os traumatismos por impacto podem resultar de forças de desaceleração e/ou aceleração. A desaceleração faz com que o cérebro colida contra o crânio após ter batido em alguma coisa (p. ex. painel de um automóvel).
As lesões de aceleração dão-se quando o crânio é batido por uma força que leva o cérebro a deslocar-se para a frente até ao ponto de impacto, revertendo então em direção até bater do outro lado do crânio, momento em que se dá a lesão por desaceleração. Em muitos casos estes fenômenos ocorrem simultaneamente.
A fisiopatologia da lesão cerebral pode dividir-se em duas categorias: lesão primária ( a que ocorre no impacto) e a lesão secundária (a que ocorre em conseqüência da agressão após o traumatismo original).
 A lesão primária é a que ocorre no momento do impacto em conseqüência das forças dinâmicas de aceleração, desaceleração ou rotação. Essas lesões abrangem contusão, laceração, cortes ou hemorragias. A lesão primária pode ser considerada moderada se não houver dano neurológico ou se este for ligeiro; ou grave quando houver grande danificação dos tecidos.
 A lesão secundária resulta de agressão fisiológica a um cérebro já danificado. Essas lesões podem ser causadas por hipóxia, hipercápnia, hipotensão, edema cerebral ou hipertensão secundária. Além de danificar os tecidos, cada um destes fatores contribui também para o aumento significativo da pressão intracraniana.
O aumento da pressão intracraniana pode levar a vários efeitos. À medida que a pressão aumenta dentro do crânio diminui a perfusão cerebral, o que leva a um maior compromisso do conteúdo intracraniano.
A hipóxia produz lesão secundária através de dois mecanismos. Ocorre isquemia dos tecidos na área inadequada oxigenada e as células da área isquêmica ficam edemaciadas.
A hipercápnia é um poderoso vasodilatador e a maior parte das vezes é causada pela hipoventilação num paciente inconsciente contribuindo para o aumento do volume de sangue.
Uma hipotensão significativa impede a adequada perfusão de tecido neural. É importante notar que raramente a hipotensão acompanha o traumatismo craniano. Se um paciente traumatizado está inconsciente e hipotenso em  conseqüência de um traumatismo craniano grave, deve ser feita um avaliação rigorosa do tórax, abdome e pélvis para detecção de sinais de hemorragia interna.
O edema cerebral resulta de alterações no meio celular causadas pela contusão, perda de autoregulação e aumento de permeabilidade da barreira hematoencefálica. A extensão do edema cerebral pode ser minimizada controlando aspectos como a oxigenação, ventilação e pressão sangüínea.
A hipertensão encontra-se habitualmente na fase inicial do traumatismo craniano grave. Em conseqüência da perda de autoregulação, o aumento da pressão sangüínea provoca um aumento do volume de sangue intracraniano e da pressão intracraniana. Devendo ser desenvolvidos esforços para manter a pressão sangüínea normal de modo a evitar a lesão secundária causada pelo aumento da pressão intracraniana.
 
Classificação e Biomecânica das lesões cerebrais

O Traumatismo Cranioencefálico (TCE) é conceituado como “qualquer agressão que acarrete lesão anatômica ou comprometimento funcional do couro cabeludo, crânio, meninges ou encéfalo”.
O indivíduo que sofre lesão por TCE pode ter danos em diversos mecanismos. Esses mecanismos de danos neuronais em lesões por TCE são: por efeitos primários (contusões e lesões axonais difusas); por efeitos secundários (hematomas epidurais, subdurais e intracerebrais; edema cerebral; hidrocefalia; aumento da PIC; infecção; hipóxia; neurotoxicidade; reposta inflamatória; ativação da protease; influxo de cálcio; liberação de radicais livres e excitotoxinas; peroxidação de lipídeos; ativação de fosfolipase). As contusões afetam áreas específicas do cérebro. As lesões por golpe ocorrem na área de impacto, devido à pressão sobre os tecidos locais, enquanto aquelas por contragolpe ocorrem distantes da área de impacto, durante desacelerações súbitas e movimentos translacionais e angulares da cabeça.
As lesões axonais difusas são danos mecânicos ou químicos aos axônios da substância branca do cérebro que ocorrem geralmente em situações de aceleração lateral angular ou rotacional. Muitas vezes essas lesões resultam em perda da consciência (PC) súbita e podem ocorrer lesões cerebrais menores ou concussões. Os hematomas subdurais e os hematomas intracerebrais têm efeitos específicos, de acordo com sua localização e grau de danos neuronais. Geralmente os hematomas subdurais afetam o nível de alerta e a cognição.
As lesões cerebrais são descritas pelas alterações funcionais que surgem ou pelas perdas que ocorrem. Assim, as anomalias funcionais que se encontram numa lesão cerebral com mais freqüência, são:
 Fraturas de Crânio: são freqüentes mas, por si só, não causam déficits neurológicos. Podem classificar-se em abertas (se a dura-máter está rasgada), fechadas (quando a dura-máter está íntegra), ou em fraturas de calote ou da base. São freqüentes as fraturas da calota craniana nas regiões parietais e temporais. As fraturas da base do crânio não são freqüentemente observáveis nas radiografias convencionais.
 Concussão: é uma lesão cerebral acompanhada por uma breve perda de função neurológica, especialmente perda de consciência. As disfunções neurológicas traduzem-se por confusão, desorientação e, por vezes, um período de amnésia pós-traumática. Outras manifestações clínicas que ocorrem após a concussão são as cefaléias, vertigens, incapacidade de concentração, perda de memória e fadiga.
 Contusão: é descrita como uma lesão de aceleração/desaceleração que produz hemorragia para dentro do parênquima superficial.
As manifestações clínicas relacionam-se com o local e o grau da contusão, e com a existência de lesões associadas. As contusões podem ser pequenas, quando áreas localizadas de disfunção produzem déficits neurológicos focais. As contusões maiores podem evoluir durante dois a três dias após o acidente causando edema e hemorragia ainda maior. Uma contusão grande pode produzir efeito de massa motivando um aumento significativo da pressão intracraniana.
 Hematomas: resultantes de traumatismo craniano têm um efeito de massa que leva ao aumento da pressão intracraniana. Os principais hematomas são: o subgaleal, o epidural e o subdural (são extraparênquimatosos – fora do tecido cerebral), e o intracerebral que danifica diretamente o tecido neural. Tanto uns como outros, produzem danos pelo efeito de pressão e deslocamento do conteúdo intracraniano.
 O hematoma subgaleal é causado por ruptura das veias emissárias que estão em conexão entre os seios durais e as veias do couro cabeludo. O sangue acumula-se entre a aponeurose epicraniana do couro cabeludo e o periósteo.  Este espaço, em potencial, se estende desde a margem da órbita até a região superior da nuca, sendo limitado lateralmente pela fáscia temporal. Esses hematomas podem ser causados por sangramentos maciços que produzem múltiplas complicações: choque hipovolêmico, coagulopatia de consumo e hiperbilirrubinemia. Afirma-se que existem diferentes hipóteses sobre a patogenia ser devido a uma fratura craniana subjacente ou por ruptura de sincondroses interósseas com lesões de importantes veias emissárias, por torção ou tração.
 O hematoma epidural traduz-se por uma acumulação de sangue entre a parede interna do crânio e a camada mais externa da dura-máter; associando-se freqüentemente a fraturas de crânio e a laceração da artéria meningea média. À medida que a artéria sangra empurra a dura-máter afastando-a do crânio e criando uma bolsa que se expande no espaço intracraniano.
A incidência deste hematoma é relativamente baixa, e pode suceder por lesão de pequeno impacto (com queda) ou de grande impacto (como acidentes com veículos motorizados). Resulta do traumatismo do crânio e das meninges e não das forças de aceleração/desaceleração registradas noutros casos.
As manifestações clínicas clássicas de uma vítima com hematoma epidural são uma breve perda de consciência no momento do impacto, seguida de um período de lucidez que pode durar até 12 horas. A este período segue-se uma rápida deterioração do nível de consciência, dilatação da pupila do mesmo lado do hematoma (homolateral) e estabelecimento de uma flexão anormal (descorticação) ou extensão anormal (descerebração).
 O hematoma subdural consiste na acumulação de sangue entre a dura-máter e a aracnoideia subjacente. A maioria deste tipo de hematomas resulta de uma laceração das veias em parte entre o cérebro e a dura-máter. As forças de aceleração/desaceleração e rotacionais são as principais causas do seu desenvolvimento, que se associa muitas vezes a contusões cerebrais e a hemorragia intracerebral.
Há três tipos de hematomas subdurais, com base no prazo que decorre desde o acidente até a instalação dos sintomas clínicos: agudo, subagudo e crônico. Os hematomas subdurais agudos são clinicamente sintomáticos nas primeiras 24 a 48 horas após o impacto.
É essencial uma cuidadosa observação do nível de consciência, que se degrada progressivamente, e dos sinais de lateralização, como desigualdade das pupilas e da atividade motora.
Os hematomas subagudos são hematomas cuja sintomatologia se desenvolve dois dias a duas semanas após o trauma. A expansão do hematoma desenvolve-se a um ritmo mais lento do que no anterior, e por isso leva mais tempo até que os sintomas se tornem evidentes.
O hematoma subdural crônico é o termo usado quando o sintoma ocorre duas semanas ou mais após o acidente. A maioria dos pacientes com este tipo de hematoma é idosa, muitos têm história de alcoolismo e alguns estão sob terapêutica anticoagulante. As manifestações clínicas são capciosas e o paciente pode apresentar uma variedade de sintomas como letargia, cefaléias, vômitos, rigidez da nuca, fotofobia, convulsões, alterações pupilares ou hemiparesia.
 O hematoma intracerebral acontece quando há um sangramento no interior do tecido cerebral. As suas causas traumáticas são as fraturas afundadas do crânio, agressões penetrantes (projétil de arma de fogo, faca, etc.), ou movimentos súbitos de aceleração/desaceleração. Este tipo de hematoma atua como uma lesão de expansão rápida e a mortalidade é elevada.
 Lesões por projétil: são causadas por objetos que produzem danos focais significativos. Podem ser afundadas penetrantes ou perfurantes.
 As lesões afundadas são causadas por fratura de crânio com penetração de osso no tecido cerebral. A lesão penetrante é causada por um projétil que entra na cavidade craniana e não sai. As lesões perfurantes são causadas por projéteis que entram e saem do encéfalo.
O prognóstico de lesão depende do grau de penetração e da localização, bem como da velocidade do projétil.
 Lesão axional difusa: a lesão axional difusa abrange um leque amplo de disfunções cerebrais causadas por forças de aceleração/desaceleração ou rotacionais.
A fisiopatologia relaciona-se com o repuxar e a laceração dos axônios que ocorrem durante o deslocamento do cérebro dentro do crânio, no momento do impacto. O repuxar produz lesões microscópicas através do cérebro, mas especialmente na profundidade do tecido cerebral e na base do cérebro. A interrupção da transmissão axional dos impulsos resulta na perda de consciência. O paciente mantém-se em coma profundo, muitas vezes com postura de descerebração ou de descorticação e disfunção autonômica, incluindo hiperemia, hipertensão e diaforese.
 
Neuroplasticidade e Reabilitação Neuropsicológica em TCE
A unidade funcional do sistema nervoso não é mais centrada no neurônio, mas concebida como uma imensa rede de conexões sinápticas entre unidades neuronais, além de células gliais, as quais são modificáveis em função da experiência individual, ou seja, do nível de atividade e do tipo de estimulação recebida (Kaas, 2001). A reabilitação neuropsicológica, como qualquer processo psicoterápico, pode então ser concebida como uma forma de aprendizagem.
Trabalhos realizados na Universidade de Munique desde a década de 70 indicam, por exemplo, que a estimulação visual seletiva e específica pode reverter quadros de perda das funções visuais relacionados a hemianopsias (Kaas, 2001). A implicação, então, é que o cérebro humano parece apresentar uma capacidade plástica e de recuperação funcional muito maior do que anteriormente suspeitada.
A plasticidade neural diz respeito ao fato de que a estrutura do sistema nervoso central não é fixa ou impermeável à influência do ambiente e dos padrões de atividade funcional. A estrutura do sistema nervoso é, ao menos em parte, influenciada pelos padrões de atividade no sistema. As lesões cerebrais são, talvez, as que provoquem maiores e mais extensos déficits funcionais no ser humano. Existem evidências de que células nervosas centrais podem se regenerar ou até mesmo se formar de novo, inclusive em mamíferos adultos. As sinapses são, entretanto, as estruturas com maior potencial para remodelação em função da estimulação ambiental e do nível de atividade.
O grande desafio contemporâneo não diz mais respeito à demonstração da existência de plasticidade sináptica em adultos, mas ao melhor modo de explorar o fenômeno clinicamente de modo a promover a restituição funcional após lesões cerebrais, para uma abordagem à reabilitação que se originou dos conceitos de plasticidade sináptica. A CIT (“constraint induced therapy”) parte do princípio de que fenômenos de plasticidade sináptica competitiva se instalam após o estabelecimento de uma necrose tecidual cerebral. Como os neurônios sobreviventes que faziam parte das assembléias formadas pelos neurônios destruídos começam a ser recrutados por outras assembléias neuronais, o processo resulta em uma inibição das funções representadas na rede neuronal cujos neurônios foram parcialmente destruídos. O único modo de reverter esta tendência inibitória é forçando o uso da parte do corpo ou função afetada. Via de regra, as lesões cerebrais mesmo focais provocam disfunções, paralisias e déficits que acometem várias modalidades das inúmeras funções do cérebro, funções estas que garantem no ser humano a sua insuperável adaptabilidade aos mais diversos e inóspitos ambientes. As células nervosas perdidas não podem ser regeneradas por divisão celular e a possibilidade de neoformação de seus prolongamentos citoplasmáticos condutores de estímulos (dendritos e axônios) é limitada pela cicatrização do foco lesional.
A função da parte afetada do corpo é estimulada por meio de técnicas. No caso das afasias, por exemplo, os pacientes podem ser trabalhados, onde uma contingência que pode ser estabelecida é que o modo de comunicação é o verbal. A comunicação não-verbal é posta em extinção e a comunicação verbal reforçada e modelada.
As pesquisas sobre neuroplasticidade têm implicações para os modelos conceituais de correlação estrutura/função no cérebro e para a compreensão dos mecanismos de recuperação funcional. A reativação de aferências é considerada um dos principais mecanismos de plasticidade sináptica. Quanto maiores os recursos pessoais e interpessoais disponíveis, previamente e após a lesão, melhor o prognóstico. Três modelos conceituais, não excludentes, são reconhecidos em reabilitação neuropsicológica: restituição, substituição e compensação. As pesquisas estão avançando no sentido de aprofundar os conhecimentos sobre os mecanismos de recuperação funcional, bem como sobre os fatores relacionados às variações interindividuais. A sugestão é de que fatores ligados à organização temporal no processamento de informação podem desempenhar um papel importante nos mecanismos de neuroplasticidade realçando a importância do papel que os microcomputadores podem representar no processo de reabilitação, dada a possibilidade de controlar automaticamente o oferecimento dos estímulos e o registro das respostas.
As novas abordagens conceituais quanto dados empíricos estão permitindo delinear paulatinamente uma nova visão do sistema nervoso como um órgão dinâmico, constituindo uma unidade funcional com o corpo e com o ambiente, e dotado de características plásticas que se manifestam sob a forma de modificações estruturais decorrentes do exercício funcional adaptativo em contextos variáveis. Estas novas concepções sugerem um equilíbrio muito sutil entre fatores genéticos e ambientais na determinação no desenvolvimento e do comportamento.
Os modelos de reabilitação em neuropsicologia devem se basear nos conhecimentos sobre os mecanismos de recuperação funcional após lesões cerebrais.
Os principais mecanismos de recuperação funcional após lesões cerebrais são: diasquise ou depressão funcional transsináptica, supersensibilidade (pós-sináptica) de desnervação e/ou hiperatividade pré-sináptica, reativação de aferências inativas e/ou preservação de colaterais, restituição por brotamento regenerativo e colateral, representação vicária ou substituição funcional e substituição comportamental.
O prognóstico quanto à recuperação funcional após lesões do sistema nervoso parece obedecer a uma lógica perversa, e prognóstico é indicado pelos recursos disponíveis ao indivíduo tanto antes quanto depois da lesão. Os dados de pesquisa indicam que, de um modo geral, o sexo feminino, a juventude, o nível educacional, o status sócio-econômico, a menor severidade da lesão, a preservação da capacidade de insight, a ausência de transtornos psicopatológicos ou adição a álcool/drogas etc., são todos fatores correlacionados com melhor êxito após lesão cerebral adquirida.
Além do conhecimento dos fenômenos neurobiológicos fundamentais de plasticidade neural é preciso levar em consideração também algumas variações interindividuais que afetam a recuperação funcional após lesões do sistema nervoso central. Ass quais podem ser sistematizadas da seguinte maneira:


(a) Localização da lesão: a localização lesional é um dos fatores prognósticos decisivos em neurologia. Pequenas lesões, situadas em lugares críticos podem causar efeitos devastadores, como é o caso de pequenos tumores ou malformações que obstruam o fluxo liquórico causando hidrocefalia e hipertensão intracraniana. Por outro lado, lesões relativamente extensas podem se desenvolver gradualmente durante anos nas chamadas “áreas silenciosas”, como é o caso do lobo frontal direito, quase sem causar sintomatologia. Os dados indicam que a localização lesional ainda é um fator a ser considerado na determinação do prognóstico. O comprometimento dos lobos frontais, por exemplo, é decisivo.


(b) Extensão e severidade do comprometimento neuropsicológico: algumas lesões de crescimento lento podem atingir proporções quase gigantescas antes de manifestarem qualquer sintomatologia mais nítida, como é o caso dos meningiomas parasagitais. Na maioria dos casos, entretanto, a extensão e severidade de comprometimento, associadas à localização lesional, constituem um fator crucial para o prognóstico funcional. Wilson (in Kass, 2001) relata diversos casos de amnésia em que os próprios pacientes conseguiram, com ajuda da família e da terapeuta, sistemas compensadores bastante complexos e engenhosos que lhes permitem uma vida razoavelmente independente. A implementação das compensações mnemônicas requer, no entanto, a preservação da capacidade de planejamento e da motivação. A presença de comprometimentos neuropsicológicos múltiplos, principalmente dos lobos pré-frontais, torna inviáveis os procedimentos de compensação. Alguns estudos (in Kaas, 2001) obtiveram resultados indicando que o desempenho em testes de funções executivas é um importante indicador prognóstico no contexto da reabilitação neuropsicológica.


(c) Etiologia e curso de progressão do processo patológico: é de se esperar que a etiologia degenerativa e o curso progressivo de algumas doenças sejam fatores limitantes quanto às possibilidades de recuperação funcional.


(d) Idade de início: muitos efeitos das lesões pré-frontais podem passar desapercebidos. O prognóstico para as lesões precoces pode não ser tão bom, mas as casuísticas clínicas indicam que a idade é um fator decisivo. A idade pode desempenhar um papel também no tipo de síndrome neuropsicológica apresentada. A incidência de afasia de Broca é maior em indivíduos mais jovens, enquanto indivíduos idosos apresentam mais afasia de Wernicke. A afasia de Wernicke geralmente apresenta um prognóstico mais reservado, o qual se compõe com outros fatores de risco, tais como a presença de lesões múltiplas e menor nível de escolarização.


(e) Tempo transcorrido desde o início do quadro: algumas observações recentes citadas por Wilson (in Kaas, 2001) indicam que, em casos excepcionais, alguma recuperação funcional pode ocorrer até mesmo anos após a instalação da lesão. A experiência prática indica, entretanto, que nos primeiros seis meses após a lesão ainda ocorre muita recuperação espontânea e que a reabilitação pode ser eficaz no sentido de produzir restituição funcional até cerca de dois anos depois do insulto cerebral. A natureza dos problemas enfrentados pelos pacientes e pelas famílias muda também com o decorrer do tempo. Nas fases iniciais, logo após a instalação de um quadro clínico agudo como um traumatismo de crânio, predominam as preocupações com a sobrevida e com a recuperação funcional. À medida que o tempo vai passando e que a recuperação vai, em certa medida ocorrendo, começa a aumentar a importância das preocupações relativas à adaptação psicossocial. Os padrões disfuncionais de adaptação psicossocial são freqüentemente agravados devido a expectativas irrealistas e incompreensão da natureza dos sintomas, tanto por parte do paciente quanto da família. Em outras ocasiões, a dinâmica de funcionamento familiar pode contribuir para o agravamento dos sintomas, sob a forma de diminuição do investimento no paciente e reforçamento negativo de comportamentos desadaptativos. Em outras circunstâncias, e apesar da natureza progressiva de muitas doenças, com acumulação de incapacidade, o tempo parece correr a favor do paciente e da sua família. As considerações mencionadas sobre o papel do tempo na recuperação funcional e adaptação psicossocial sugerem fortemente que as intervenções neuropsicológicas se iniciem o mais cedo possível após o diagnóstico. Do ponto de vista da recuperação funcional, as intervenções precoces podem otimizar os processos de naturais de recuperação funcional. Do ponto de vista da adaptação psicossocial, as intervenções precoces podem minorar o sofrimento quando ele é mais intenso e, ao mesmo tempo, prevenir a instalação e manutenção de padrões desadaptativos de comportamento.


(f) Variações na organização cerebral das funções: um indivíduo ambidestro vai enfrentar menos dificuldade para aprender a usar a mão esquerda após uma hemiplegia direita. A representação bilateral da linguagem pode facilitar a recuperação funcional após um quadro de afasia. O sexo também desempenha um papel importante na organização cerebral das funções e na sua recuperação. A incidência de afasias é menor em mulheres e seu prognóstico é melhor. Mulheres, por outro lado, são mais susceptíveis à depressão e homens a distúrbios externalizantes de comportamento.


(g) Condições ambientais, sócio-demográficas e estilo de vida: o apoio familiar e social é um dos fatores mais importantes na recuperação funcional, da mesma forma que a motivação. Alguns pesquisadores mencionam que os fatores sócio-demográficos associados ao prognóstico: educação, profissão, nutrição, saúde física e mental, etc. Especialmente no que diz respeito às condições pré-mórbidas de adaptação e características sócio-demográficas parecem encontrar o seu domínio de validade. Ou seja, quanto melhor o nível adaptativo pré-mórbido e quanto mais leve o comprometimento, melhor o curso de reabilitação funcional. Muito mais do que variáveis objetivas e externamente verificáveis, são as percepções subjetivas do indivíduo que muitas vezes também desempenham um papel determinante na previsão de uma série de êxitos relacionados à saúde. Diversos modelos teóricos em psicologia da saúde, enfatizam o papel que as crenças e percepções do indivíduo desempenham na manutenção e recuperação dos seus níveis de bem-estar. As crenças e percepções do indivíduo podem se constituir em um foco muito frutífero de intervenções neuropsicológicas. A constatação de que fatores subjetivos, como as percepções de apoio social e a motivação, podem influir sobre o processo de recuperação funcional após lesões do sistema nervoso central levanta a questão dos mecanismos envolvidos a nível tecidual. Dados indicam que o exercício físico é uma forma de experiência que induz alterações plásticas no sistema nervoso central. Existem evidências de que manipulações do estado emocional induzem modificações significativas no desempenho cognitivo.


(h) Fatores agravantes internos ou externos: alguns fatores agravantes são especialmente insalubres, tais como o uso de álcool, tabaco, drogas e a presença de psicopatologia prévia. Estes fatores agravantes interagem muitas vezes de modo complexo com agravos ao sistema nervoso central. Um episódio de esquizofrenia pode, por exemplo, ser precipitado por um traumatismo de crânio em um indivíduo com alterações prévias de personalidade (observação pessoal). Em muitas ocasiões torna-se difícil para o neuropsicólogo precisar o que é efeito de uma lesão agudamente adquirida e o que eventualmente é manifestação de um transtorno prévio do desenvolvimento, por exemplo.
O conhecimento dos mecanismos de plasticidade sináptica e de recuperação funciona.

 

Artigo escrito por Dra. Karla Behring Cardoso (psicóloga)

Bookmark and Share
Bookmark and Share