Neuropsicologia no Comprometimento Cognitivo Vascular

 Introdução

 

O Comprometimento Cognitivo Vascular (CCV) é o conceito mais atual que melhor abrange e engloba todas as formas e níveis de gravidade de comprometimento cognitivo causados por AVE / AVC (acidente vascular encefálico / acidente vascular cerebral.

 

Fisiopatologia

 

A fisiopatologia do CCV abrange a distribuição dos vasos e sua patologia; fatores hemodinâmicos e metabólicos; fatores de risco, que como resultado podem levar a distúrbios circulatórios e em última instância à lesão do tecido nervoso, causa das manifestações clínicas.

 

Artérias Cerebrais

 

O conhecimento das características da circulação cerebral é importante na compreensão dos tipos de lesão que podem aparecer.

A circulação cerebral é provida pelas artérias cerebrais e seus ramos, constituindo os assim chamados vasos grandes e os vasos pequenos.

Os grandes territórios vasculares cerebrais compreendem as artérias que constituem o polígono de Willis e se irradiam do polígono de Willis, vascularizando extensas áreas corticais: artéria cerebral anterior (ACA), artéria cerebral média (ACM), artéria cerebral posterior (ACP), artéria corióidea anterior (AChA) e as artérias comunicantes anterior (ACoA) e posterior (ACoP).

 

Imagem:

 

 

 

(portalsaofrancisco.com.br)

 

(casoclinicoacv.blogspot.com)

 

Os vasos cerebrais pequenos correspondem às artérias perfurantes superficiais e profundas, além das artérias de pequeno calibre e arteríolas corticais. As principais áreas supridas por vasos pequenos incluem os núcleos cinzentos centrais, o centro semioval, os territórios ou limítrofes profundos e as áreas córtico-subcortical e periventricular.

As lesões isquêmicas causadas por doença dos vasos grandes decorrem de embolias artéria-artéria e a trombose vascular. A causa principal é a aterosclerose, porém outras arteriopatias podem ocorrer. Ataques de causa embólica também são frequentes. A patologia dos vasos pequenos compreende a arteriolosclerose hipertensiva, a degeneração microvascular (tortuosidade, fibro-hialinose, lipo-hialinose) e outras arteriolopatias, assim como a angiopatia amilóide cerebral (AAC).

 

Controle do Fluxo Sanguíneo

 

Os principais fatores são os distúrbios hemodinâmicos (tensionais), comprometimento da regulação do fluxo sanguíneo cerebral (autoregulação, quimiorregulação, controle neural, acoplamento do fluxo ao metabolismo), assim como fatores hematorreológicos, metabólicos, distúrbios de barreira hematoencefálica. Os mecanismos relacionados ao fluxo (perfusão) levam a diversos tipos de lesão. Assim, a interrupção focal do fluxo (oclusão de um vaso) causa infartos completos; a redução de fluxo para níveis inferiores às necessidades metabólicas de uma região (estenose vascular e queda tensional) leva a infarto incompleto; a interrupção multifocal (oclusão múltipla de vasos grandes) causa infartos múltiplos, e a hipoperfusão de zonas limítrofes (estenose da carótida interna e queda tensional) causa infartos em territórios limítrofes.

A população idosa apresenta alta prevalência de desordens cardiovasculares, causa importante de morbidade (e mortalidade), relacionadas a alta prevalência de CCV e DV (Demência Vascular). As causas cardiogênicas (microembolia cerebral, hipoperfusão) são fatores de riscos significativos no declínio cognitivo do idoso. Além disso, intervenções de revascularização cardíaca com enxertos vasculares e derivação cardiopulmonar aumentam as complicações cognitivas de modo importante, conforme aferido no período da alta, assim como anos depois.

Os principais tipos de lesão que podem ocorrer relacionados a um infarto podem explicar algumas manifestações clínicas transitórias ou permanentes. As lesões podem ser estáticas (infartos territoriais, lacunas, patologias, isquêmica de substância branca, infartos de zonas distais, necrose isquêmica incompleta – gliose focal, necrose laminar); pode haver distúrbios funcionais (perifocais e a distância – desconexão, diásquise) e acometimento de sistemas de neurotransmissores.

 

Fatores de Risco

 

Entre os mais importantes fatores de risco para ocorrer um ataque cerebrovascular (ACV) encontram-se hipertensão arterial, diabetes mellitus, hipercolesterolemia, doença cardiovascular, fibrilação atrial, tabagismo, homocisteína aumentada, trombose, álcool e fatores genéticos.

 

Síntese Fisiopatológica

 

As lesões vasculares atingem regiões corticais e/ou subcorticais, com manifestações deficitária e/ou de liberação e/ou de desconexão, associadas em determinados períodos ao fenômeno de diásquise, com expressão clínica específica de acordo com a estrutura e/ou função atingida; e vias relacionadas aos diversos neuromoduladores provenientes de núcleos subcorticais (colinérgicos, serotonérgicos, noradrenérgicos e dopaminérgicos), causando interrupção parcial ou total de uma ou mais das mesmas e comprometendo a neuromodulação, que se reflete através de transtornos variados que podem ser relacionados a regiões distantes da lesão.

A resultante desse duplo acometimento (‘binômio estrutura lesada-dismodulação’) fornece as bases fisiopatológicas subjacentes às manifestações observadas e seus matizes, assim como os fundamentos para determinadas estratégias terapêuticas.

 

Classificações

 

Uma classificação útil é a que considera aspectos clínico-patológicos que permite também uma articulação com aspectos fisiopatológicos subjacentes às manifestações clínicas.

Quando é levada em consideração a localização da região acometida, a importância é diferente, com uma divisão em áreas não estratégicas e estratégicas, estas situadas em regiões límbicas e paralímbicas e em algumas áreas heteromodais (área pré-frontal, parietal esquerda, entre outras), sem contar ainda com as estruturas subcorticais.

As lesões, em casos de CCV e DV, encontram-se preferencialmente localizadas em áreas associativas e/ou límbicas, corticais e/ou subcorticais e/ou suas conexões.

 

Quadro de Classificação

(Fisio)patologia

Vasos Grandes (predominância cortical)

Infartos múltiplos

Infartos estratégicos

Vasos Pequenos (predominância subcortical)

DVIS (Doença Vascular Isquêmica subcortical)

CADASIL (Arteriopatia Cerebral Autossômica Dominante com Infartos Subcorticais e Leucoencefalopatia); Binswanger; État Lacunaire

Córtico-subcortical

Isquêmica-hipoperfusiva

Encefalopatia Anóxico-Isquêmica Difusa

Lesão por vulnerabilidade Seletiva

Territórios limítrofes (zonas distais)

Hemorrágica

Hemorragia cerebral, subaracnóide, trombose venosa

 

Manifestações clínicas

 

As manifestações clínicas compreendem comprometimento cognitivo, sintomas de comportamento e psicológicos e sinais motores, em associações variáveis, de acordo com a localização e o número de lesões que atingem territórios corticais e/ou subcorticais específicos e as vias associativas.

 

Comprometimento Cognitivo

 

A avaliação neuropsicológica é item importante no diagnóstico do CCV e DV, pois permite a análise do comprometimento cognitivo (um ou múltiplos domínios), individualizando o comprometimento em relação ao paciente e permitindo desse modo uma melhor adequação de estratégias terapêuticas não farmacológicas e farmacológicas.

Vistos como doença neurológica típica, os quadros clínicos permitiram identificar os diversos sintomas da DCV que refletem as regiões cerebrais lesadas. Considerando a heterogeneidade dos subtipos de CCV e DV, levando em conta a localização e as extensão da(s) lesão(ões), ficam aparentes também a variedade de apresentações neuropsicológicas e a dificuldade de estabelecer comparações entre pacientes.

A avaliação neuropsicológica deve ser ampla o suficiente para possibilitar a análise dos principais domínios cognitivos (atenção, linguagem, memória, gnosia, praxia, função executiva) e precisa ser adequada às possibilidades do paciente.

 

Sintomas e Comportamento e Psicológicos

 

Os estudos sobre o assunto são ainda pouco frequentes, embora os pacientes com CCV e DV apresentem sintomas de comportamento e psicológicos da demência (SCPD) com prevalência que merece atenção.

Os SCPD mais frequentes são os transtornos de humor (ansiedade, depressão, mania), seguidos por transtornos de comportamento (agitação/agressividade) e sintomas psicóticos (delírios/alucinações). Podem também ser observadas labilidade emocional, apatia, desinibição, mudanças de comportamento alimentar e sexual, erros de identificação, além de distúrbios do sono. Estão descritas ainda a reação catastrófica e a reação de indiferença.

A depressão é a manifestação mais frequente e objeto de grande número de estudos, sendo mais observada no CCV e DV de pequenos vasos.

Um aspecto que merece atenção são as manifestações neuropsiquiátricas pós-ACV. Robinson e seu grupo, entre outros, estudaram essa questão, encontrando com maior frequência depressão e ansiedade, apatia e reação catastrófica. O diagnóstico pode ser difícil ou impossível em alguns grupos de pacientes, principalmente nos que apresentam comprometimento cognitivo (p.ex. afasia). A depressão pode durar de 9 a 24 meses. A lesão do hemisfério esquerdo tem sido considerada como a localização mais frequente relacionada com depressão; entretanto, numerosos estudos não mostram isso de modo consistente, com alguns não observando associação significativa com a localização da lesão, e outros mostrando associação significativa com lesão do hemisfério direito. A depleção de monoaminas que ocorre após lesões basais ou do lobo frontal pode estar relacionada com a gênese da depressão.

 

Manifestações Neurológicas Associadas

 

O CCV é acompanhado por sinais neurológicos em uma proporção grande dos casos. O controle motor é frequentemente comprometido, em intensidade variável, com manifestações piramidais unilaterais (hemiparesia-plegia, paresia facial) ou bilaterais e extrapiramidais (parkinsonismo), apraxia de marcha (‘ataxia frontal’), distúrbios da deglutição e da fonação com riso-choro espasmódico (‘síndrome pseudobulbar’), distúrbios do controle oculomotor, presença de reflexos primitivos. Ocorre também frequente acometimento sensitivo-sensorial (visual, auditivo, vestibular, somestésico). As manifestações autônomas são representadas principalmente por incontinência esfincteriana.

 

Funções cognitivas comprometidas de acordo com os subtipos de CCV. Ressalta-se que o comprometimento unilateral pode causar comprometimento menos marcante e/ou específico em função da especialização hemisférica.

 

Subtipo de CCV

Funções Cognitivas Comprometidas

Infartos Múltiplos

Linguagem (afasia – Broca, Wernicke, global), memória (amnésia), praxia (ideatória, ideomotora, construcional), gnosia (prospagnosia, simultangnosia)

Estratégicos

Variável

Giro angular: linguagem (anomia, alexia, agrafia, acalculia), gnosia (agnosia digital), orientação (desorientação direita-esquerda) (síndrome de Gerstmann)

Hipocampo: memória (amnésia anterógrada)

Tálamo (variável, de acordo com os núcleos lesados): memória (amnésia), linguagem (afasia), atenção (negligência hemiespacial)

Caudado: função executiva (síndrome disexecutiva), memória (amnésia, redução fluência verbal), atenção, praxia, gnosia (anosognosia)

Cápsula interna (joelho): memória (amnésia verbal, redução fluência verbal), linguagem (anomia)

Lacuna

Variável

Função executiva (síndrome disexecutiva), memória (redução fluência verbal)

Binswanger

Atenção, linguagem, função executiva (síndrome disexecutiva), memória (de recuperação)

Formas Mistas

Variável

Comprometimentos acima relacionados

 

Avaliação Neuropsicológica

 

A neuropsicologia tem assumido uma posição de destaque no diagnóstico dos quadros de comprometimento cognitivo e de demência, fazendo atualmente parte integrante de todos os critérios diagnósticos.

 

Reabilitação Neuropsicológica

 

A reabilitação neuropsicológica representa importante iniciativa para a promoção e manutenção da capacidade funcional e cognitiva da pessoa com comprometimento cognitivo e da sua qualidade de vida.

Reabilitar significa restituir ao estado anterior, restaurar a normalidade, ou ao mais próximo desta, a forma e a função do organismo, após trauma ou doença. Tecnicamente, a reabilitação pode ser definida como um processo de mudança ativa, com o objetivo de capacitar ideais de funcionamento físico, psicológico e social. Os termos de reabilitação neuropsicológica (RN) e reabilitação cognitiva (RC) são comumente usados como sinônimos na literatura; entretanto, há diferenças entre eles. A RN é mais abrangente e inclui a RC. A RN tem como objetivo ajudar pacientes e familiares a conviver, reduzir ou superar as deficiências cognitivas, e as limitações emocionais e sociais, proporcionando melhora na qualidade de vida. A RC ocupa-se especificamente do tratamento das funções cognitivas, isto é, tem como objetivo melhorar o desempenho em tarefas que demandam determinadas funções cerebrais.

 

Conclusão

 

Reabilitar significa muito mais que apenas recuperar funções deficitárias ou debilitadas. Na verdade, é buscar realização como ser humano, pois uma pessoa que adquiriu abruptamente uma deficiência tem diante de si uma longa jornada de esforços e tratamentos para enfrentar.

O tratamento de reabilitação é realizado mediante um conjunto de procedimentos diagnósticos e terapêuticos aplicados aos pacientes com incapacidade, com objetivo de promover o restabelecimento de suas capacidades físicas, psíquicas, sociais e profissionais.

O paciente, em processo de reabilitação, precisa ser ativo e participativo, agente de mudança de sua condição, e ser acolhido em seu sofrimento pela equipe de profissionais.

No processo de reabilitação, não se trabalha somente em equipe, pois existem conhecimentos específicos e práticas técnicas de cada área. No entanto, estes conhecimentos são colaborativos, pois estão em voga a atitude de cada um, o respeito pelo paciente, a capacidade de solidariedade e de empatia, o interesse mútuo e o relacionamento.

O profissional de psicologia insere-se na equipe multiprofissional, assumindo uma perspectiva crítica em relação à reabilitação das pessoas que sofreram algum acometimento físico e psíquico, ou seja, pensa na totalidade que encerra a vida do paciente e no movimento específico do processo de reabilitação. Visa possibilitar ao paciente o enfrentamento de sua situação atual, de sorte que possa atuar e transformar sua condição e as suas relações sociais e, assim, propiciar uma melhor qualidade de vida.

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